AMENAZA ROBOTO | Da seca à inundação: ROCHA
Areia Movediça
Os pescadores artesanais da região de Valizas trabalham no ecossistema de lagoas costeiras para abastecer com camarões o turismo, a gastronomia e o comércio. Um efeito climático incomum interrompeu a comunicação entre o oceano e o riacho em um momento inoportuno. Isso causou uma safra extraordinária que se tornou catastrófica.

Esta investigação foi apoiada pelo Pulitzer Center.

Por: Miguel Ángel Dobrich e Gabriel Farías.
Dados geoespaciais: Natalie Aubet e Nahuel Lamas.
Fotos: Matilde Campodónico. Design: Antar Kuri.
Edição: Victoria Melián. Tradução: Diogo Rodriguez.

6 de setembro de 2023
Alejandro Álvarez cresceu e ainda vive no departamento de Rocha, às margens do riacho Valizas, com seus filhos e sua parceira. Ele faz parte de uma pequena comunidade de cerca de 10 famílias que estão estabelecidas ali há décadas, cuja principal fonte de renda é a pesca artesanal.

Eles capturam várias espécies que se desenvolvem no riacho e na Lagoa de Castillos; uma delas, o camarão, faz a diferença na renda das famílias de pescadores.
Casas em Puente de Valizas, Rocha, Uruguay.
Valizas é a área de pesca por excelência para o camarão. Os chefs mais renomados dos destacados centros turísticos da região, como Punta del Este, José Ignacio, La Pedrera ou Punta del Diablo, selecionam os melhores exemplares em Valizas, que posteriormente são servidos em seus restaurantes a clientes com recursos substanciais. Desde 2015, é realizado um "festival de camarões" em abril, que atrai moradores locais e turistas de todos os lugares. Durante a temporada de verão e durante as épocas de pesca, centenas de pessoas migram para a cidade para trabalhar. O camarão é muito valorizado e requisitado.

As mudanças climáticas estão ameaçando o presente e o futuro dessa pequena comunidade de pescadores em Rocha, bem como de todas as pessoas ou negócios relacionados com a pesca de camarão no Uruguai —até mesmo os consumidores.
Alejandro Álvarez com uma armadilha de camarão.
Uma armadilha natural
A cada ano, as crias de camarão chegam do Brasil pelo Atlântico, entram pelo riacho Valizas e permanecem na Laguna de Castillos, a 10 km da costa oceânica, para depois migrar novamente quando adultos e reproduzirem-se nas águas do Sul do Brasil. A área da foz do riacho no mar, chamada de la barra, abre e fecha devido ao acúmulo de areia em momentos específicos do ano, permitindo a entrada e o retorno do camarão na lagoa. Esse ciclo natural é acompanhado pela intervenção humana, que inicia, por sua vez, um ciclo comercial de fornecimento de alimentos por meio da pesca. A temporada de pesca de camarão na área de Valizas começa no final do verão, em março, e se estende até maio.
Entre 1991 e 1994, o uso de redes de praia foi abandonado em favor da armadilha de camarão. A capacidade de pesca com armadilhas aumentou o volume de captura. A prática tornou-se mais eficiente e reduziu o esforço físico dos que trabalham no riacho e nas lagoas. A legislação uruguaia permite que cada pescador utilize, no máximo, 10 armadilhas, embora alguns pescadores tenham mais, até 40.

A pesca artesanal é uma profissão que é passada de pais para filhos. Alejandro é filho e neto de pescadores artesanais. Ele não se lembra de ter visto ou ouvido falar de nada parecido ao que aconteceu em 28 de fevereiro de 2023. Não há relatos de algo semelhante nas últimas três gerações. Nenhum dos habitantes entrevistados para esta reportagem tem lembranças de algo parecido. Foi um dia de pesca inoportuno e frenético.

Uruguay tiene cuatro lagunas costeras, cuerpos de aguas salobres de poca profundidad, que se caracterizan por tener conexión con el mar: Laguna José Ignacio, Laguna Garzón, Laguna de Rocha y Laguna de Castillos. Allí se encuentran especies de mar y agua dulce: corvina blanca, lenguado, bagre de mar, corvina negra, pejerrey, bagre de agua dulce, tarariras, camarones y hasta tres especies de cangrejo sirí, con predominio del cangrejo azul.

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El área de captura: la laguna costera

Aquele dia atípico foi o resultado de uma temporada de seca igualmente atípica causada pelo fenômeno climático La Niña, que afetou o continente americano. La Niña é um fenômeno decorrente do resfriamento das águas do Pacífico tropical, que começou a se manifestar há três anos, mas apenas nos últimos meses a população notou seu poder transformador.

Em janeiro de 2023, os pecuaristas e agricultores do interior do país exibiam na televisão terras rachadas onde normalmente havia um curso de água. Em Montevideo, a capital do Uruguai, a crise chegou apenas 60 dias depois, quando os níveis das reservas de água potável que abastecem quase dois milhões de pessoas, mais da metade da população do país, atingiram níveis críticos. Para lidar com essa situação, chegou-se ao extremo de misturar a água doce com a proveniente do Rio da Prata, um estuário onde o rio que dá nome ao país desemboca e se mistura com a água salgada do oceano. Pela primeira vez na história do Uruguai, a rede de tubulações levou água não potável às residências.

Em Valizas, o fenômeno se manifestou com a diminuição do nível das águas, o que fechou a comunicação entre o oceano Atlântico e o riacho Valizas, que, então, diminuiu de tamanho.
Imágenes © 2022 y © 2023 de Planet Labs PBC.
A barra se fechou em 5 de fevereiro, conforme mostram as imagens de satélite. Em 28 de fevereiro, ela ainda permanecia fechada, o riacho estava em níveis historicamente baixos, e os cardumes de camarões ficaram presos em uma poça natural desconectada também do curso principal do riacho, disponíveis para qualquer transeunte que quisesse levá-los apenas com um balde ou até mesmo uma toalha.
A armadilha de camarão é uma peça essencial da infraestrutura de pesca.
Pesca antes da abertura da temporada. Foto: Amenaza Roboto.

Naquele 28 de fevereiro, a notícia se espalhou entre os moradores da região desde o amanhecer, e eles foram até a foz do riacho de manhã e à tarde. Com medo de que os pequenos camarões morressem devido à falta de água, os pescadores e os moradores se lançaram na captura de tudo o que fosse possível antes que atingissem a maturidade ou peso mais adequado.

As armadilhas que os pescadores costumam usar para a pesca de camarão pareciam ridiculamente grandes diante da pouca água que mantinha o riacho vivo. O uso de redes de arrasto ou redes pequenas provou ser mais eficaz.

Os pescadores encheram enormes baldes de plástico azul com capacidade para 200 litros com as crias de camarão, sem saberem muito bem o que fazer com elas ou como mantê-las em bom estado até o momento da venda ou consumo. O sistema de refrigeração mais profissional que tinham era um freezer de uso doméstico.
El producto de la zafra
  • Entre 200 y 300 personas, en los departamentos de Rocha y Maldonado, están vinculadas a la pesca y las primeras etapas de manipulación del camarón.
  • Se consiguen unas 200 toneladas de camarón entero. La mitad de la masa muscular se pierde en la limpieza: en consecuencia, entran 100 toneladas de pulpa de camarón al mercado local.
  • Se obtiene 1 millón de dólares de primera venta, y se puede triplicar el monto en los movimientos posteriores.

Fuente: Datos de investigación del biólogo Santiago Silveira.
À esquerda está a Laguna de Castillos, lugar onde crescem os camarões. A lagoa está ligada ao Oceano Atlântico (direita) pelo Riacho Valizas. A comunicação entre o oceano e a lagoa é regulada por uma barra que abre e fecha.
As maiores chegadas de camarões são registradas, geralmente, em novembro e dezembro. Como se pode notar, a barra de Valizas estava aberta no período de chegada das pós-larvas.
Como consequência da seca, com o passar dos dias, começou o processo que levaria ao fechamento da barra.
Durante este mês, a barra se fechou completamente.
A barra continuou fechada no período de crescimento dos camarões.
De maneira incomum, no período analisado, a lagoa e o riacho permaneceram separados do mar.
Google Maps e imágenes © 2022 y © 2023 de Planet Labs PBC.
Desequilíbrio produtivo
A alteração no ciclo de pesca do camarão está relacionada a uma superabundância em momentos atípicos, que também tem sua origem nas mudanças climáticas. O biólogo e pesquisador Santiago Silveira, membro da Unidade de Gestão Pesqueira do Atlântico, explicou que a presença de "pós-larvas" - termo usado pelos cientistas para se referir às crias de camarão - foi favorecida pelo aumento do influxo de águas oceânicas de origem tropical devido à seca. Após o início da temporada, "pescou-se muito durante cinco dias", afirmou Silveira.

A safra de 2023 teve números impressionantes: foram utilizadas 1.000 armadilhas e pescadas 160 toneladas de camarão. No entanto, como resultado direto da pesca precoce e ilegal, que desrespeitou a regulamentação das temporadas de pesca para garantir a sustentabilidade das espécies, o mercado inicialmente teve uma grande quantidade de camarões de menor tamanho e peso, o que afetou o valor do produto e os lucros dos pescadores artesanais.

Em 28 de fevereiro de 2023, a barra estava fechada e permaneceu assim até 28 de agosto, a última data em que foram obtidas imagens antes da publicação desta pesquisa. Em maio, quando a safra deveria estar em pleno andamento, a abundância havia se esgotado. A presidente do grupo de pescadores de Barra de Valizas, Luz Martínez, definiu a situação como caótica. "É um momento de total incerteza, não sabemos se o camarão acabou".

A ciência também não tem registros de um fenômeno semelhante na região. "Um evento como o deste ano nunca tínhamos visto antes: não há registros em nossa memória nem na dos pescadores", disse Graciela Fabiano, veterinária e mestre em Zoologia, membro da Unidade de Gestão Pesqueira do Atlântico da Direção Nacional de Recursos Aquáticos.

No fim de maio, a pesca de camarão continuava na Laguna de Castillos e no riacho Valizas, embora fossem muito poucos os pescadores envolvidos na extração. Havia 60 armadilhas, o volume de captura era baixo, e, apesar de os camarões restantes terem atingido um tamanho aceitável, de cerca de 10 gramas, ocorreu um incidente inesperado: uma espécie estrangeira de ctenóforos (organismo com aparência semelhante às águas-vivas) estava saturando as redes e impedindo a colheita.

De acordo com Alejandro Álvarez, "esta safra de camarão não serviu para ninguém. A pesca foi difícil porque o camarão subiu antes do tempo e não foi muito pescado. Não paguei as contas de luz, água e estou endividado até o pescoço. Então, imagine o quanto isso me custou".

As pesquisas sobre o clima realizadas pelo Departamento de Ciências da Atmosfera da Faculdade de Ciências da Universidade da República indicam que, para o Uruguai, "já foram detectadas mudanças" em algumas dessas ameaças climáticas e que elas "permanecerão e se aprofundarão em um contexto de mudança climática".

Em relação à dinâmica de chuvas e dias secos, as pesquisas afirmam que "os extremos de precipitação aumentariam, assim como o número de dias com chuvas fracas diminuiria, o que implica uma situação com um maior número de dias secos interrompidos por eventos intensos de precipitação". Ou seja, haverá mais dias secos, mas eles serão interrompidos por fortes chuvas.

Se os eventos meteorológicos extremos forem intensificados, os pescadores de camarão terão novamente uma temporada ruim.
A casinha em que os pescadores descansam e se abrigam durante suas longas jornadas de trabalho.
Luz Martínez, representante do grupo de pescadores de Puente de Valizas.

Futuro próximo
A evolução da pesca de camarões é um exemplo da influência direta das mudanças climáticas nas atividades cotidianas, como a preparação de uma receita na cozinha. Seus efeitos afetam áreas críticas quando a cadeia de abastecimento é interrompida, desequilibrando, assim, a economia em um setor produtivo que até então era sustentável.

A pesca artesanal corresponde a 18,4% das capturas totais do país, de acordo com dados do Observatório Território Uruguai da Secretaria de Planejamento e Orçamento. Seu destino é principalmente a subsistência e abastecimento dos mercados locais.

A continuidade da atividade também depende de um cenário que assegure aos pescadores iniciantes que o retorno do investimento em infraestrutura para pescar tenha prazos razoáveis. De acordo com os dados da pesquisa do biólogo Santiago Silveira, os novos pescadores artesanais de camarão costumavam obter em condições normais cerca de cinco mil dólares de lucro por temporada. "Se um pescador começa do zero, o custo de operação com 10 armadilhas é de $250 mil (pesos uruguaios)". Tradicionalmente, esse montante era recuperado em duas safras. Não foi o caso em 2023.
No cenário em que a seca continue e o sistema de barra costeira permaneça fechado, os especialistas afirmam que em 2024 não haverá camarões. "Isso seria um efeito muito claro do impacto da seca sobre esta pesca", diz a zoóloga Graciela Fabiano.
No entanto, na segunda metade de 2023, durante a primavera, são esperados grandes volumes de chuva devido ao El Niño, o fenômeno oposto à La Niña, no qual predominam as correntes quentes que aumentam a probabilidade de precipitações no continente sul-americano. Os pescadores de Barra de Valizas concordam que um cenário de chuvas intensas na primavera seria ainda mais prejudicial para a pesca de camarão do que a seca. O pescador Luz Martínez sabe que, com grandes volumes de água, os camarões se deslocam da lagoa e do riacho para o oceano.

Como Graciela Fabiano destaca, tudo depende do momento em que as precipitações ocorrem. Se houver muita chuva, o camarão não poderá entrar no riacho no momento de sua migração para a lagoa. Se houver muita chuva quando o camarão estiver amadurecendo na lagoa, a correnteza o levará antes do tempo.
A pesca artesanal como profissão
Segundo pesquisadores, organizações locais e organismos internacionais como a FAO, a pesca artesanal é potencialmente sustentável e de grande importância. Em termos gerais, essa é uma atividade fundamental para o desenvolvimento local, pois proporciona meios de subsistência para populações rurais, cria identidade e cultura, e transmite esses conhecimentos à sociedade.

O biólogo e pesquisador Martín Laporta afirma que "com um bom quadro regulatório e boas práticas, a pesca artesanal é uma solução adequada de exploração, compatível com a manutenção dos ecossistemas". Mesmo com uma captura menor, a pesca artesanal "é mais equitativa em sua distribuição: gera mais empregos do que um barco industrial. Por exemplo, com 30 quilos de captura de alta qualidade, um pescador artesanal pode empregar sete descascadores, e sua esposa pode cuidar do primeiro ponto de venda do camarão".

Além disso, aspectos menos visíveis da infraestrutura, como o monitoramento dos ecossistemas costeiros, estão ligados à atividade em torno da pesca. Os pescadores artesanais desempenham um papel fundamental para a comunidade científica: "Do ponto de vista da pesquisa no Uruguai, seria muito difícil conhecer o que temos em nosso oceano, em nossas costas, os recursos e a diversidade, se não houvesse pesca".
Agradecimentos especiais

  • Serviço de Sensores Remotos Aeroespaciais da Força Aérea Uruguaia
  • Universidade Tecnológica do Uruguai (UTEC)
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